Angola celebrou, a 1 de Junho, o Dia Mundial da Criança, data igualmente comemorada por mais países, como são os casos de Portugal e Moçambique. Mas existem, também, aqueles que celebram a efeméride numa data diferente, como o Brasil, que escolheu o 12 de Outubro.
Por ocasião da data, a Economia & Mercado (E&M) andou por alguns pontos de Luanda, a cidade capital do País, para acompanhar o dia–a–dia de várias crianças, além de ouvir depoimentos sobre o que pensam para o futuro.
À partida, a calcular pelas histórias captadas, engana-se quem se baseia nas estatísticas globais para tirar conclusões sobre a situação da criança em Angola. Por exemplo, além de revelar dados que apontam para a diminuição das taxas globais de mortalidade infantil, o UNICEF certifica o esforço do Governo de Angola na luta contra a violação dos direitos da criança.
Mas o resultado parece ‘não conjugar’ perfeitamente com as constatações da E&M, feita no chamado bairro ‘Porto Pesqueiro’, onde a realidade desmascara ‘desigualdades persistentes’ que afectam uma população infantil aparentemente ‘vulnerável’.
Falta água potável, escolas públicas, hospitais, postos médicos, espaços de lazer e vários outros direitos aos quais as crianças, à E&M, juram de ‘pés juntos’ não terem acesso.
Por exemplo, à entrada do bairro está uma vala de drenagem a céu aberto, que periga a integridade física de várias dezenas de crianças. Além de servir como ponte por onde os cidadãos fazem travessia, parece que a infra-estrutura é, também, um dos principais espaços de lazer para uma larga maioria de crianças.
A infra-estrutura aparenta ser ‘velha’, mas os moradores consultados dizem que a mesma terá sido alvo de intervenção do Governo, através da mão-de-obra estrangeira, há pouco menos de oito anos.
“Nós andamos a brincar de se dar corrida aqui”, relata o pequeno Zzezito. Com os pés descalços, já que carrega o par de chinelos pretos nas mãos, o menino de 12 anos, destemido e aparentemente emocionado com os ‘disparos’ do gatilho da câmara, oferece-se para chamar outros seus amigos.
“Kota, espera só, eles vão vir. Venham, também vão vos tirar fotos nesses kotas”, apela em voz alta.
No seu rosto vê-se a alegria de uma criança inocente que encontrou uma razão diferente para sorrir. “Ainda não sei o que vou ser”, diz Zezito, depois de levar alguns minutos a pensar na pergunta sobre o que pensa ser no futuro.
“Quero ser polícia”, responde Adão. É curioso que, à sua semelhança, mais cinco crianças, num universo de sete, inquiridas em locais diferentes, nutrem o mesmo sonho. São os casos de Lourenço, Isaías, Lucas, Bernardo e Paulo, todos a frequentar a 4.ª classe no Complexo Escolar Manguxi - 5426, que fica logo à entrada do bairro.
Paulo quer ser agente da Polícia para ajudar a melhorar a situação da segurança pública no bairro que o viu nascer. Aliás, é a mesma justificação de Isaías. Já Lourenço, de 13 anos, quer ser como o pai, que há muito tempo anda nas fileiras da Polícia Nacional. Contrariamente, Lucas e Bernardo foram inspirados pelos filmes.
Além de agentes da polícia, no futuro, parece que o ‘Porto Pesqueiro’ poderá ser apontado como um bairro por onde nascem talentos do futebol nacional, porque Marcos, de 12 anos, Jeremias, de 13, Sousa, de 14, e Jonilson, de 13, só pensam na ‘bola’.
A julgar pelo que dizem à E&M, o futebol é, praticamente, o único lazer que os meninos têm disponível. Jogam, normalmente, nas ‘apertadas’ ruas do bairro, noutras vezes no interior de um quintalão particular, onde se salva quem consegue escapar da reprimenda dos seguranças.
“Depois de fazer o serviço, começamos a jogar. Na escola, também jogamos na hora do intervalo. Ao sair, antes de chegar em casa, jogo com os colegas”, conta Sousa, o mais velho entre os quatro potenciais activos dos ‘Palancas Negras’.
Do sonho de futebol, a E&M avançou para a enfermagem, um desejo que não sai da cabeça da menina Rosa Maria. Com os seus 12 anos, Rosa vai à escola quando calha, tudo porque sobre si recai o ónus de cuidar da casa e dos irmãos mais novos.
A sua jornada começa às 6h da manhã, já com os braços ocupados e a cabeça pressionada pelo relógio. Os pais saem antes do nascer completo do sol. Rosa tem a inegociável obrigação de tratar da higiene e alimentação dos dois irmãos mais novos, além de levá-los à escola.
No regresso, conta que deve, obrigatoriamente, reservar tempo para acarretar água, tratar da higiene da casa e preparar almoço para quando os dois pequenos voltarem.
“Às vezes não tenho como vir na escola. Mas quando venho, muitas vezes fico a dormir, por causa do cansaço”, confessa. É, na verdade, com um semblante carregado que a menina fala à E&M. Aparenta, tal como refere, estar agastada.
Mudam-se as personagens, mas história se repete
À saída do ‘Porto Pesqueiro’, o ‘Nguanhã’, antes localizado no Distrito Urbano do Sambizanga, agora atrelado ao Hoji Ya Henda, no município do Cazenga, é a outra paragem da equipa de reportagem da Economia & Mercado. Parece que a história não se altera.
Além da mudança de circunscrição, devido à Divisão Político-Administrativa do País, o bairro também sofreu outras alterações, principalmente do ponto de vista dos serviços sociais.
Para começar, já não é pela ‘famosa’ entrada da Comarca até à Nocal, agora oficialmente denominada "Nossa Senhora de Fátima", que se tem acesso ao bairro, sobretudo, para viaturas. Por aquela via, só as motorizadas têm ‘passe livre’, embora com elevado grau de dificuldade.
Para viaturas, resta a ‘estrada nova’, por detrás do Dom Bosco - Valão Sorouca, mais conhecida como entrada das Mabubas. É por esta via que a equipa da E&M chegou ao interior do bairro.
Logo à entrada, uma pista denuncia a existência da ‘proibitiva’ exploração do trabalho infantil: uma criança, com os pés descalços, carrega um enorme saco, posicionado entre o ombro esquerdo e a cabeça. À distância não se consegue decifrar o que há, de facto, no saco. Entretanto, de perto, vê-se, com dificuldade, uma quantidade de plásticos.
Mas não é a única pista que a E&M tem, pois ao fazer o cruzamento para o centro, antes da escola Ebenezer, das mais conhecidas do ‘Nguanhã’, está outro menino, por cima de um contentor de lixo, a catar plásticos.
Aparenta ter 10 a 11 anos, a julgar pela sua fisionomia. Está igualmente descalço, com o tronco descoberto e despreocupado com a ‘multidão’ que passa por ele.
“Estes não são os únicos, existem outros. Para piorar, muitos são mesmo mandados pelos seus responsáveis. Mesmo os que não são orientados fazem este trabalho sob o olhar dos pais. É quase a mesma coisa”, atira um morador que prefere anonimato.
Entretanto, além das críticas, há, no Bairro Nguanhã, a Organização Não-Governamental (ONG) “Quero Ler”, criada para preencher ‘lacunas’ no sistema de ensino público, precisamente o pré-escolar e primário.
A instituição nasceu a 4 de Fevereiro de 2002. Actualmente, conta com pouco mais de 1.030 alunos matriculados, divididos em classes e períodos diferentes, além dos professores, que entram nas estatísticas de pessoas empregadas.
Educação pré-escolar: 88% dos centros infantis do País são de iniciativa privada
O Orçamento Geral do Estado (OGE) continua a prever despesas para o Sistema de Ensino Pré-Escolar (que compreende as Creches e Jardins-de–Infância) e Primário.
Por exemplo, para o actual exercício económico está prevista uma despesa total de 78.028.582,00 Kz, extraída do bolo reservado para o Ministério da Educação (180.403.504.785,00 Kz).
Trata-se, na verdade, de uma verba superior aos 15 214 000 000,00 e 194 336 042,00 de kwanzas previstos nos Orçamentos Geraisl do Estado de 2023 e 2022, respectivamente.
Até ao momento, com os montantes cabimentados anualmente, o Governo construiu 171 centros infantis públicos, que representam 11,2% dos 1.515 existentes no País. Cálculos da E&M indicam que 88% dos centros são de iniciativa privada.
Deste total, por exemplo, a província de Luanda detém 1.185 centros, dos quais 6 são públicos. O número de centros infantis públicos existentes em Luanda representa 0,3% dos que funcionam a nível do País e 0,5% do total na província.
Crianças continuam vítimas de fuga à paternidade, diz INAC
Em resposta ao questionário da Economia & Mercado, o Instituto Nacional da Criança (INAC) registou mais denúncias de casos de fuga à paternidade que qualquer outra violência contra a criança nos primeiros quatro meses de 2024 (Janeiro a Abril).
Segundo o documento do INAC, foram registadas 2.760 (duas mil, setecentas e sessenta) denúncias de fuga à paternidade, sendo 1.795 (mil, setecentas e noventa e cinco) arroladas por atendimento presencial e 965 através do atendimento SOS-Criança.
A lista segue com 1.069 (mil e sessenta e nove) registos de denúncias de Exploração ao Trabalho Infantil, 539 de Violência Física, 280 de Violência Psicológica, 174 de Violência Sexual e 110 de Abandono de Criança, todos divididos entre as feitas via presencial e SOS-Criança, linha de atendimento.
Pela via presencial, diz o documento, Benguela, com 724 casos, aparece como a província que mais registou denúncias, seguida por Luanda com 600, Bié com 546 e Huambo com 421 casos.
Quanto às denúncias feitas via SOS-Criança, Luanda lidera a lista com 1.060 denúncias, seguido por Bié com 734, Benguela com 668 e Huambo com 389 casos.
De modo geral, o INAC registou, nos quatro primeiros meses de 2024, um total de 9.728 (nove mil, setecentos e vinte e oito) casos de violência contra a criança, sendo 3.478 (três mil, quatrocentos e setenta e oito) através do atendimento presencial e 6.250 (seis mil, duzentos e cinquenta) através do serviço de denúncia SOS-Criança.
Entre as vítimas, de acordo com o documento do INAC, constam 4.868 crianças do sexo masculino e 4.860 do feminino.
Os números actuais sobre a situação de crianças vítimas de abandono familiar é de 53 casos. A província do País que apresenta números mais preocupantes é o Huambo, que registou 30 casos, sendo 12 do sexo masculino e 18 do feminino.
Estatística: Mortes globais de crianças atingiram mínimo histórico em 2022
O número de crianças que morreram antes dos cinco anos atingiu um mínimo histórico, caindo para 4,9 milhões em 2022, de acordo com as estimativas do Grupo Interagências das Nações Unidas para a Estimativa da Mortalidade Infantil (IGME).
O relatório divulgado a 13 de Março deste ano revela que mais crianças estão a sobreviver hoje do que nunca, com a taxa global de mortalidade de menores de 5 anos caindo 51% desde 2000, com o Camboja, o Malawi, a Mongólia e o Ruanda a reduzirem a mortalidade de menores de 5 anos em mais de 75%.
Além disso, continua, pelo menos 2,3 milhões de mortes de menores de cinco anos em 2022 ocorreram durante o primeiro mês de vida, sendo que 2,6 milhões de crianças morreram entre 1 e 59 meses.
De modo geral, entre 2000 e 2022, o “mundo perdeu 221 milhões de crianças, adolescentes e jovens, sendo a África Subsaariana e no Sul da Ásia as zonas de maior concentração”.
Quanto às taxas actuais, a informação disponível no site do UNICEF prevê que 59 países não cumprirão a meta de mortalidade de menores de 5 anos dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 64 ficarão aquém da meta de mortalidade neonatal.
“Isso significa que cerca de 35 milhões de crianças morrerão antes de completar cinco anos até 2030 – um número de mortes que será suportado em grande parte por famílias na África Subsaariana e no Sul da Ásia ou em países de renda baixa e média-baixa”, lê-se.