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A Venda Informal no Cuito: Reflexão Crítica sobre a Sustentabilidade de uma Prática Cultural e Económica

Moniz Sebastião
21/10/2024
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Foto:
DR

Esta prática vai além de uma simples resposta à precariedade económica: é uma estratégia de resiliência e adaptação cultural.

A venda informal é um fenómeno transversal em muitos países africanos, especialmente em Angola. Esta actividade económica, que permeia grande parte do continente, tem raízes históricas e culturais profundas, derivando de uma herança colonial que relegou as populações locais para a periferia das actividades formais. Compreender as motivações, consequências e o papel das políticas públicas é essencial para abordar a venda informal de forma eficaz, sem desconsiderar o seu peso social e económico.

1. A Dimensão Económica e Social da Venda Informal

Em África, a venda informal surge como uma resposta directa às necessidades de sobrevivência num contexto de fragilidade económica e desigualdade. As populações excluídas dos circuitos económicos formais, muitas vezes devido à falta de qualificação e ao desemprego elevado, encontraram na venda ambulante uma forma de sustento. Este fenómeno está intimamente ligado a factores como o analfabetismo, o êxodo rural e a incapacidade dos governos em oferecer soluções adequadas ao elevado número de desempregados.

Angola, com uma história marcada por uma economia centralizada durante o período pós-independência e, posteriormente, por uma transição para uma economia de mercado, viu no comércio informal uma solução emergente para a sobrevivência das suas populações. No entanto, esta prática vai além de uma simples resposta à precariedade económica: é uma estratégia de resiliência e adaptação cultural. A prática de zungar – caminhar pelas ruas com produtos para venda – tornou-se uma marca da cultura urbana angolana,  particularmente em cidades como Luanda e Cuito.

2. O Desafio no Cuito

A cidade do Cuito, à semelhança de outras capitais provinciais angolanas, tem assistido a uma intensificação da venda informal. Locais como o Mercado da Cambumba e a Rua Cidade de Luanda transformaram-se em epicentros desta actividade, reflectindo as pressões económicas e sociais que afectam a população local. Os cauladores, como são conhecidos os revendedores no Bié, aproveitam a ausência de regulamentação eficaz para criar redes de comercialização que, em muitos casos, ocupam os passeios e dificultam a circulação.

As autoridades têm tentado controlar esta situação, mas muitos fiscais acabam por usar o seu poder para extorquir os vendedores, em vez de encontrar soluções construtivas. Esta prática, aliada à falta de políticas públicas eficazes, cria um ciclo de confronto entre o Estado e os vendedores, numa luta onde os mais vulneráveis são sempre os primeiros a perder.

A venda informal transformou-se numa parte indissociável da economia angolana. Em mercados como o do Hoji ya Henda, em Luanda, e mais recentemente nas ruas do Cuito, esta prática é uma solução para aqueles que não têm acesso ao emprego formal, permitindo-lhes gerar algum rendimento. Contudo, a informalidade também tem custos: a falta de regulamentação prejudica o ordenamento urbano e cria tensões entre as necessidades de sobrevivência e a necessidade de manter a ordem pública.

3. Dimensões Antropológicas e Psicológicas

Do ponto de vista antropológico, a venda informal reflecte a resiliência e adaptação das populações africanas face às limitações impostas por um contexto socioeconómico adverso. A informalidade não é apenas uma solução económica, mas também reflecte dinâmicas sociais e culturais que privilegiam a proximidade e a interação face a face. O zungueiro angolano, além de comerciante, é um elo entre a comunidade e os produtos que, de outra forma, não estariam acessíveis para muitos consumidores.

Psicologicamente, a venda informal oferece um sentido de autonomia a quem a pratica. Mesmo sem um emprego formal, o vendedor sente que tem controlo sobre o seu trabalho e os seus ganhos, o que lhe proporciona um certo grau de dignidade e independência. No entanto, esta prática está associada a cansaço físico e emocional, pois envolve longas horas de trabalho em condições precárias, sem segurança social ou protecção legal.

4. O Papel do Governo e as Fragilidades Políticas

O governo angolano, como muitos governos africanos, tem enfrentado dificuldades em regular o sector informal de forma eficaz. Embora reconheça a importância desta actividade para a sobrevivência de muitos cidadãos, as suas tentativas de controlo têm sido frequentemente ineficazes ou, em alguns casos, contraproducentes. As práticas de fiscalização, por vezes abusivas, reflectem a incapacidade de encontrar um equilíbrio entre a necessidade de regular o espaço público e a de garantir meios de subsistência.

As políticas públicas em Angola têm, até certo ponto, negligenciado a importância de integrar o sector informal na economia formal. A criação de empregos formais, a promoção de cursos técnico-profissionais e o fomento de uma cultura de empreendedorismo sustentável são áreas em que o governo poderia intervir para reduzir a dependência da informalidade. No entanto, até ao momento, estas medidas têm sido insuficientes.

O país já demonstra exemplos positivos de valorização de mão-de-obra técnica, como acontece no sector petrolífero, onde muitos dos técnicos angolanos não possuem formação universitária, sendo formados no Instituto Nacional de Petróleos (INP), no Sumbe, ou através de programas de formação contínua no local de trabalho (train on job). Da mesma forma, os jovens que trabalham nas barragens eléctricas de Lauca, Capanda e outros grandes projectos estruturantes para o desenvolvimento têm recebido formação técnica, demonstrando que cursos técnicos podem criar oportunidades para uma mão-de-obra qualificada e sustentável.

5. Soluções Inteligentes e Sustentáveis

Resolver o problema da venda informal exige uma abordagem multidimensional que equilibre as necessidades económicas, sociais e políticas. Em primeiro lugar, é crucial que o governo reconheça a importância da venda informal como uma realidade económica e crie políticas que permitam a sua coexistência com o sector formal. A criação de feiras municipais, onde os vendedores possam operar legalmente, é uma solução que tem funcionado em vários países, tanto na América Latina como na Europa.

Em segundo lugar, é necessário investir na formação técnico-profissional da população jovem e na criação de empregos dignos. O ensino universitário não é o único caminho para o desenvolvimento económico; como os exemplos do INP e das barragens elétricas demonstram, cursos técnicos podem ser um factor-chave para o crescimento económico inclusivo.

Por fim, o diálogo entre os diferentes intervenientes – governo, vendedores e a sociedade civil – é essencial para encontrar soluções que beneficiem todos. A venda informal faz parte do problema, mas também deve ser parte da solução. Apenas através de um esforço conjunto será possível alcançar uma harmonia social que respeite tanto os direitos dos vendedores como a necessidade de manter a ordem pública.

Portanto, a venda informal, em Angola e no Cuito em particular, é uma prática complexa que exige uma abordagem equilibrada. É necessário entender as suas raízes históricas e culturais para que se possam criar políticas que não apenas restrinjam, mas que também ofereçam alternativas viáveis. O governo deve assumir a responsabilidade de proteger os seus cidadãos, garantindo-lhes meios de subsistência dignos e condições de trabalho seguras. Ao mesmo tempo, os vendedores informais também têm um papel a desempenhar na preservação do espaço público e no respeito pelas regras de convivência.

O caminho para a solução reside no diálogo, na educação e na criação de oportunidades. Angola, como muitos outros países africanos, enfrenta o desafio de transformar a informalidade numa fonte de inovação e desenvolvimento sustentável.