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“Algumas pessoas dizem que sou contra, mas no fundo sou um artista que procura criar, expressar e retratar a sociedade” - Paulo Flores

Sebastião Garricha
6/1/2025
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Foto:
Carlos Aguiar

Além de histórias sobre sua jornada e momentos marcantes da carreira nos últimos 25 anos, Paulo Flores convida-nos a conhecer suas memórias, contando inspirações, realizações e dificuldades.

Paulo Flores, angolano que tem nas veias sangue do Bengo e de Benguela, de onde seus avós são originários, é o 18º convidado das ‘Conversas E&M 25 anos’, entrevista guiada pelo jornalista Sebastião Vemba. 

Nascido em 1972, o senhor dos temas “Inocenti”, “Coisas da Terra”, “Njila Ia Dikanga”, “Minha Velha”, “Cabelos da Moda”, “Gepe” e muito outros sucessos abre o coração à E&M para uma conversa onde descreve o ‘longo’ percurso que o transformou na referência incontornável que canta e encanta há pouco mais de 36 anos

Entre histórias da sua jornada, momentos marcantes da carreira e reflexões sobre a Angola de ontem, de hoje e a que se pretende ter, o artista convida-nos a conhecer suas memórias, contando inspirações, realizações e dificuldades.

Paulo Flores conta que ‘largou’ o País aos 12 anos, seguindo com a mãe para Lisboa, em Portugal, e só regressava nos períodos de férias. 

“Encontrei exemplos e imagens de uma sociedade que, sempre que voltasse para lá, sentia falta de estar aqui. Parece que toda a gente se conhecia, toda a gente comia a mesma lata de fiambre e havia essa identificação entre os bairros e as comunidades. Isso foi muito importante para mim”, lembra o músico, revelando que, ao mesmo tempo, em Lisboa via a saudade das avós e da mãe, que regularmente falavam o quimbundo em casa. 

Para o autor do “Bênção e a Maldição” (2020), “Kandongueiro Voador” (2017), “Sassasa” (2014), “O País que nasceu meu Pai” (2013), “The Best” (2011) e “Perto do Fim” (1999), a diáspora tem essa força no sentimento, que é de estar distante, mas todos os fins de semana celebrar com funge ouvindo a música de Angola. 

“Então, essas coisas são muito inerentes àquilo que acabou por acontecer comigo e com a minha música. E acho que essa infância é a mais marcante”, atira, revelando que são essas as memórias que deram, se calhar, a nostalgia poética nas suas canções, de ter um pouco a sátira na forma de escrever e juntar todos como culpados e inocentes, sem apontar o dedo. 

“E chegar aqui, depois de tantas quedas, tantos erros, tantas coisas que não correram como planeamos, como a vida é, mas mesmo assim sentir esse prazer intacto, acho que é a principal…”, esclarece.

Influência da família na formação do ‘poeta’ que canta 

À E&M, Paulo Flores fala da influência das avós na sua vida, principalmente as da parte materna, natural do Bengo, que falavam quimbundo em casa e ouviam músicas antigas de David Zé e Artur Nunes. 

Por outro lado, fala da influência do pai, que era 'discotequeiro', tocava em várias festas e recebia música do mundo inteiro, numa altura onde muitas vezes Luanda estava à 'frente’ de Portugal. 

“O meu pai teve o Thriller do Michael Jackson. Nós recebemos em Portugal seis meses depois. Eu já tinha gravado numa cassete”, confidencia. 

Além desse amor à música, à memória e à cultura, Paulo Flores revela que o principal ingrediente da sua formação foi o amor e o afecto que, com separação ou não, sempre fez se sentir a criança mais amada do mundo, seja pela mãe, pelas avós ou pelo pai. 

“É isso que eu retribuo e ainda tenho presente como uma chama acesa na minha música, também pela memória deles e de tudo o que nos ensinaram com o tempo”, atira.

Angola dos últimos 25 anos 

Nestes 25 anos eu assisti do palco uma mudança na capacidade de interpretação. Muitas vezes até na capacidade e na coragem para sentir alguma coisa”, revela Paulo Flores, confidenciando que muitas vezes assistia do palco essa perda de referências. 

Para o também compositor, a capacidade e a avidez das pessoas para saberem mais coisas e a generosidade que ainda se vai encontrando, às vezes, numa esquina ou outra do nosso do País e da nossa sociedade são as únicas referências que ainda encontra pungente e que oferecem esperança, de facto. 

Ainda quanto aos últimos 25 anos do País, Paulo Flores refere-se aos 22 anos de paz, iniciados a 4 de Abril de 2022. 

“Nessa altura estava a viver nos combatentes e foi, de facto, uma sensação de alívio, de deixar para trás tantas mágoas e incertezas em termos do ambiente que se viveu”, revela, explicando, além disso, que a sensação se assemelha ao que já tinha acontecido em 1992. 

“Até fiz um álbum que se chamava “Tunda Mujila”, que de alguma maneira parecia quase uma banda sonora daquele momento que estávamos a viver, quando as pessoas começaram a sair de província para província”, explica. 

De acordo com Paulo Flores, registou-se um grande crescimento económico, social e cultural; muitos shows aconteceram, muitos discos foram gravados, muitos artistas apareceram e, portanto,foi assim que muitos viveram, com essa esperança das coisas endireitar-se. 

“Mas acho que fomos perdendo um pouco esse Comboio. Sinto que estamos num momento muito mais delicado, onde não conseguimos fazer com que toda a gente apanhe esse comboio da melhoria da vida”, explica Paulo Flores. 

A seu ver, todos (angolanos) sentem falta de dar mais educação, mais formação, mais competências à sociedade, mais Saúde, mais dignidade, o que faz com ‘ainda’ se tenha “muitos inocentes”. 

“Quando eu canto ‘inocenti’, sinto que é quase como se fosse um ambiente que só nós angolanos conseguimos sentir, porque o que me parece é que as pessoas estão a celebrar o facto de estarem vivas e não a chorar os problemas do dia a dia nessa música”, atira Paulo Flores. 

É, como refere o músico, quase que, no tempo da Guerra, quando a se cantava “Estou de Regresso à Vida”, onde muitas vezes eram pessoas que faziam uma longa estrada para fugir da Guerra. 

Os últimos 10/15 anos da carreira 

Durante o 18º episódio das ‘Conversas E&M 25 anos’, Paulo Flores revela que, na sua carreira, aconteceram várias coisas nos últimos 10/15 anos, entre as quais cenários de ameaças e ‘boicotes’. 

“Alguém que chega e diz que está a dar um recado de outra pessoa ou alguém que vai levar mensagens erradas da minha parte. Isso sempre aconteceu. Pessoas lá fora que queriam contratar e depois aqui diziam que não estava, que eu não queria, que eu não podia e levavam outras pessoas. 

Apesar de tudo o que revela à E&M, é de gratidão que se enche o músico Paulo Flores, essencialmente pelo facto de, ainda assim, ser a escolha de muitas pessoas e poder representar os angolanos. 

“Não existem aqui muitos traumas, estou numa fase economicamente espiritual e tranquila”, atira Paulo Flores, revelando-se confiante de que a música que canta agrega valores. 

Paulo Flores entrou para o mundo da música para se ver livre da timidez, longe da ideia de ser famoso, mas as mensagens das pessoas levaram-no a perceber que mais pessoas sentiam a dor que cantava e, assim, compreendeu que existe uma dimensão maior da arte, de ser também uma maneira que as pessoas têm de aliviar a dor, de se expressar ou de se identificar. 

“Há histórias que eu não gosto de contar, porque elas são tão pessoais de quem me contou, que prefiro guardar para mim. Mas tem, de facto, relatos de música como “Inocenti” salvar a vida de pessoas, que não tinham capacidade sequer de ir para a escola e tinham que a ouvir todos os dias. Até histórias de batalhas dos tropas voltarem da guerra e porem na cassete tipo “cabelos da moda”, confidencia.

Liberdade de expressão 

Conhecido por sua maneira singular de contar vivências por intermédio da música, Paulo Flores, que lançou seu primeiro disco há 36 anos, conta que no início, com 16 ou 17 anos, não tinha a noção do contexto político. 

Lembro, entretanto, que cantou a música “Porque choras Pio Pio”, com 17 anos, com a dor que sentia, dos contrastes que via na sociedade. “As palavras saíam quase compulsivamente. Antes do pensamento era mesmo por instinto. 

“Nunca entendi, nunca pensei muito nisso e posso dizer aqui em primeira mão que se houve brigas entre as pessoas, no sistema ou no aparelho eu não”, revela Paulo Flores, garantido que, que nunca sentiu essa coisa ao ponto de se incomodar e ficar retraído para não fazer algo que sentisse que aconteceu. 

Com os anos, como descreve à E&M, o conceituado músico angolano foi ficando mais maduro e  percebendo, às vezes, a importância que a música suas palavras tinham na vida das pessoas. 

“Então comecei a ganhar uma outra consciência e, se calhar, já não fazia tanto por instinto, fazia um rascunho, mas nunca aceitei mudar o que eu sentia no meu íntimo numa obra criativa”, garante Paulo Flores. 

Kizomba ou Semba

Paulo Flores revela que se estreou no musical cantando Kizomba, numa altura em que diziam não ser música de Angola. Referindo-se à sua entrada, cita nomes de músicos como Eduardo e Ruca.

Anos depois, percebeu que sua linguagem, a sua métrica e forma de sentir já era o Semba, muito a ver com as referências da avó, dos discos e do pai, embora os arranjos do Ruca e do Eduardo fossem na kizomba. 

“É isso que está dentro de mim. Também sempre senti o carinho de todas as partes. Muita gente nunca gostou muito de mim, há pessoas que dizem que sou contra, mas no fundo sou um artista que procura criar, expressar e retratar a sociedade de uma forma até acho bastante sensível e carinhosa”, esclarece.

‘Tour’ por Angola

A recordar os seus 36 anos de carreira, Paulo Flores deu uma volta por Angola. O roteiro descreve uma viagem pela dor, pela perda e pela celebração onde todos, no final, saíram mais inteiros e confiantes.

Explica que durante a ‘tour’ sentiu a possibilidade de entender mais uma vez e constatar que a grande força de Angola são, de facto, as pessoas, contando a generosidade com que foi recebido e pela forma que às vezes as faziam o sacrifício para poder estar presente em cada show. 

A outra alegria, segundo o músico, foi ter visto várias gerações (avós, filhos e netos) trocando afectos e concretos na força, bem como um ‘ambiente mágico’.

“Foi bastante especial perceber isso”, revela Paulo Flores, explicando que, dentro de todas as dificuldades inerentes às condições do País, sentiu a força motora que vem do coração da história da memória e, além disso, percebeu que as gerações vão recebendo esses testemunhos também em casa.

“Poder ver uma avó na primeira fila, como disse há pouco, ainda antes de começarmos a entrevista em Benguela, com 80 e tal anos, a cantar, chorar e sair no ecrã gigante, e ver toda a gente abraçada. Tudo isso faz parte dessa esperança que cantamos”, finaliza.