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O continente na imposição para a economia cultural, um esteio a ser explorado

Ernesto Gouveia
27/5/2024
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As indústrias culturais são necessárias porque o seu activo é garantidamente renovável desde que, para isso, haja engajamento para a continuidade.

Há um enorme respeito, quase confundido com veneração, pela ancestralidade africana. Os mitos, rituais e lendas são activos de grande significado, sem colocar de parte o elemento de pendor também espiritual. Este pormenor, ligado ao misticismo, vem dar ainda maior força ao valor cultural com que África sempre esteve rotulada, uma vez que a espiritualidade é, em muitas das suas sociedades, um factor incontornável para definição de convicções, valores e padrões identitários.  

Estes detalhes, se assim podemos considerar, acabam por ser um recurso de grande valia para a autenticidade reflectida em inúmeros produtos culturais, ou seja, distinguem o continente-berço, se comparado com os restantes continentes. Daí a atracção que ele gera a quem venha a ter contacto com a sua realidade, em que se consegue vislumbrar a pureza de que ele é revestido. 

A força do seu manancial é inegável. Trazendo como consequência o indiscutível peso económico, seja qual for o produto cultural, desde que conte (ou não) uma história.  Da modesta contribuição que Angola pode dar ao valor económico da cultura africana, traçamos um olhar, pela horizontal, ao Museu Regional do Dundo, não só pelo acervo como também pela atracção que constitui aos apreciadores da museologia africana, em modo restrito, e da museologia mundial, para sermos mais abrangentes. É um dos mais ricos acervos museológicos em África, mas, diga-se, com uma expressão muito clara no contexto mundial, por várias razões. São milhões de dólares aí guardados, se olhamos para o que vale cada uma das peças, sendo que as mesmas são internacionalmente certificadas. 

Da modesta contribuição que Angola pode dar ao valor económico da cultura africana, traçamos um olhar, pela horizontal, ao Museu Regional do Dundo

Injusto será manter o silêncio em relação aos saques que o continente tem sofrido, com um sem número de obras museológicas e outras, vendidas a peso de milionário, para outras instituições que, apesar do exemplo moral que transmitem, alimentam o mercado do contrabando, o que vem a ser um autêntico paradoxo. As frentes organizadas, vocacionadas para a recuperação de obras que estejam nesta condição, ficam, em muitas ocasiões, quase impotentes se não tiverem argumentos financeiros que sirvam de contrapeso.  

Os aspectos citados atrás são apenas a ponta do icebergue, no que diz respeito ao valor económico dos produtos culturais africanos. Torna-se impossível olhar para este desiderato sem que nos possamos debruçar sobre a gastronomia ou a música. Esta última marcou um ponto de viragem, há pouco mais de vinte anos, quando a música congolesa perdeu espaço para a música nigeriana. 

Antes de falar de representatividade que a música nigeriana tem a nível do mundo, importa destacar que os primórdios da rumba estão em África. Para tentarmos ser mais claros, devemos apenas frisar que a chamada rumba congolesa é apenas o regresso às origens, de um género que tem a sua génese no continente negro. Daí termos elementos referenciais como Tabu Ley Rochereau , Luambo Makiadi “Francó”, o beninense Gnonas Pedro, incluindo na lista o angolano Samuel   “Sam” Mangwana, só para exemplificar apenas alguns de  uma extensa lista de destacáveis nomes que figuram na história da rumba. 

Existem elementos suficientes que fundamentam esta afirmação, fora os que já foram aqui esmiuçados. Devemos ter em conta que o factor histórico, quando associado à música, atribui a este um valor ainda bem maior. É aí onde entra a sensibilidade de quem, de forma natural, percebe todas as nuances envolvidas, onde o folclore tem um papel predominante. Por esta razão, a música nigeriana, tema o qual recuperamos a abordagem, constituiu-se num dos maiores do mercado do entretenimento africano. Basta olharmos para as cifras que representam os rendimentos de muitos dos seus artistas. 

É importante que se saiba que a Nigéria, após a explosão do cinema, com o surgimento de NoolyWood, gerando consideráveis cifras e um elevar de qualidade, procurou fazer o mesmo com a música. Para isso, foi necessário frear o segmento musical, com a implementação de um novo arranque. Este arranjo, estrategicamente definido, serviu como fundamental para a existência de uma indústria, na verdadeira acepção da palavra. Como resultado, além do domínio da música, no continente, a Nigéria já tem os seus artistas na lista de preferências das estrelas mundiais, pelo estrondoso sucesso que fazem nas pistas, playlists, tendências e palcos na América e mais. Rhema, Burna boy, Wizkid são apenas alguns exemplos onde ainda cabem outros. 

É importante que se saiba que a Nigéria, após a explosão do cinema, com o surgimento de NoolyWood, gerando consideráveis cifras e um elevar de qualidade, procurou fazer o mesmo com a música

A indústria da música nigeriana evoluiu. Todas as gerações de nigerianos tiveram música da sua geração. A música dominante de ontem é antiga, mas serve de escola para as novas gerações. Em algum momento, a música na Nigéria era vista como um mero passatempo, mas agora cresceu e se tornou um participante importante no PIB daquela nação economicamente petrolífera. No entanto, o mais interessante é que, com o crescimento da música, chegou a riqueza para os seus executantes, beneficiando de rendimentos financeiros que atingem números astronómicos que, como resultado para os cofres do Estado, trazem desvios legalmente direccionados para a tributação.

A autonomia económica, referenciada há pouco, passa por elementos que têm como fundamento estes factores. O mesmo modelo serve, certamente, para outras realidades no continente, tal como tem vindo a acontecer na África do Sul que, paralelamente, dá cartas no segmento do turismo, com uma cifra considerável para o PIB, tendo ainda uma participação activa a nível do mundo, com a realização do Africa TraveI INDABA, dos maiores eventos anuais do sector, a exemplo de outras acções da área que mostraram ter pernas para seguir. Aliás, é o que tem vindo a acontecer. Basta que se pesquisem os resultados desde que foi lançado o movimento cujo slogan era “it is possible”. 

A autenticidade, as reminiscências tradicionais, o traço histórico e o facto de muitas gerações da diáspora terem a sua génese em África reforçam ainda mais a ideia de que o continente tem argumentos para a autossustentabilidade económica, tendo a indústria cultural como um factor de integração para o crescimento. Provas para isso já foram dadas, reforçando argumentos da necessidade de um pensamento estratégico bem definido, se colocado em prática, escusado será acreditar que não dará certo. 

Os bens culturais, além do seu elemento cultural estruturante, compartem com os demais bens e serviços económicos o emprego. A maioria destes recursos possui usos alternativos e portanto um custo de oportunidade e um preço. Isto não quer dizer que todos os bens e serviços culturais se vendam em um mercado, ainda que isso suceda em muitos casos, como, por exemplo, na contratação dos serviços de artistas e outros profissionais criativos. O Estado costuma fornecer alguns produtos culturais de forma gratuita. Esta é uma decisão política e não económica: a maior parte dos bens culturais não são bens públicos. Entretanto, muitos especialistas deste sector pensam que os bens culturais possuem características próprias dos bens públicos que os mercados não podem captar plenamente através dos preços.

Devemos também compreender que a planificação, como estratégia para que se encontrem soluções que tragam resultados satisfatórios, tem de estar em sintonia com o interesse das instituições ou vice-versa. Do contrário, é impossível pensar que os resultados surjam na devida altura. Infelizmente, a total politização de órgãos internacionais como a União Africana (UA), Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) anula completamente qualquer importância que tenha de ser dada ao poder económico que o sector cultural, nas suas mais variadas vertentes, pode proporcionar. 

As indústrias culturais são necessárias porque o seu activo é garantidamente renovável desde que, para isso, haja engajamento para a continuidade, sem que os factores endógenos sejam comprometidos. 

O continente tem ainda muito para dar, mas para isso é importante que esforços conjugados sejam feitos no sentido de permitir que haja uma clara expressão no contexto universal, das valências económicas que a cultura africana tem. Com acções isoladas, sujeitamos a que o tiro esteja a ser dado no escuro.

(Ernesto Gouveia, crítico)