As doenças evitáveis, como cólera, tuberculose, asma, paludismo, febre tifóide e outras, são reflexos da pobreza em suas múltiplas dimensões: absoluta, relativa e subjectiva. A relação entre saúde e pobreza não é nova. Como afirmam Marmot e Wilkinson (2006), a saúde de uma população é um reflexo directo das condições sócio-económicas em que vive. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2023) também reforça que a desigualdade social é um dos principais determinantes das doenças transmissíveis e não transmissíveis.
1. Doença e Cultura: O Reflexo das Condições Sociais
A doença não pode ser vista apenas como um fenómeno biológico, mas também como um fenómeno cultural. Cada sociedade desenvolve determinados tipos de enfermidades conforme os seus determinantes sociais e económicos. Como destaca Foucault (1976), as condições sanitárias e estruturais de uma sociedade determinam como as doenças se manifestam e como são combatidas. No caso de Angola, onde ciclos de surtos como paludismo, febre tifóide e cólera são frequentes, a raiz do problema está nas precárias condições de vida da população.
A Constituição da República de Angola estabelece o direito a um ambiente sadio para todos. No entanto, a realidade contrasta com essa previsão legal: a maior parte da população vive sem acesso adequado a água potável, saneamento básico e electricidade, condições essenciais para a prevenção de doenças. A OMS (2022) destaca que 80% das doenças em países em desenvolvimento estão associadas à falta de água potável e saneamento básico.
2. A Ilusão de Responsabilizar apenas o Ministério da Saúde
A resolução do problema das doenças endémicas não pode ser atribuída exclusivamente ao Ministério da Saúde. É necessário um olhar holístico e multidisciplinar, envolvendo múltiplos sectores governamentais, incluindo:
i) Ministério da Educação: para sensibilização sobre saúde e hábitos de higiene.
ii) Ministério da Energia e Águas: para garantir o fornecimento de água potável.
iii) Ministério do Ambiente: para fiscalização da poluição e gestão de resíduos.
iv) Ministério da Construção e Infra-estruturas: para garantir habitações e ambientes dignas.
v) Ministério da Economia e Finanças: para alocar recursos adequados à saúde pública.
vi) Ministério do Interior e Serviços de Inteligência Externa: para combater crimes ambientais e económicos que afectam a saúde pública.
O foco excessivo na resposta médica ignora as causas estruturais. Como argumenta Sen (1999), a pobreza não é apenas a falta de rendimentos, mas a privação de capacidades básicas, como acesso a saúde, educação e um ambiente saudável.
3. O Perigo dos Alimentos Importados e a Segurança Alimentar
Em 2017, publiquei no jornal online Ongoma News um artigo intitulado "Vivendo e Morrendo pela Boca – Os Desafios da Segurança Alimentar", onde alertei para o risco de alimentos importados de baixa qualidade, frequentemente utilizados como armas de dominação económica. A fome reduz a capacidade crítica da população, que muitas vezes consome alimentos sem questionar a sua origem ou segurança.
A questão central é: quem licencia a entrada desses produtos e quem fiscaliza a sua conservação e comercialização? A falta de rigor na inspecção de alimentos compromete a saúde pública e expõe a população a doenças evitáveis.
4. Água Contaminada e o Círculo Vicioso das Doenças
O acesso à água potável é uma questão de saúde pública, mas, em Angola, muitas comunidades dependem de fontes contaminadas. A recomendação governamental de adicionar lixívia à água para torná-la segura é uma solução paliativa que ignora os riscos de intoxicação e os impactos negativos a longo prazo na saúde. Estudos da OMS (2019) indicam que o consumo excessivo de substâncias químicas como lixívia pode causar irritações gastrointestinais e comprometer a microbiota intestinal.
A ausência de um sistema de recolha, selecção e tratamento de resíduos agrava o problema, tornando os bairros urbanos e rurais verdadeiros focos de doenças. Além disso, a falta de energia eléctrica e sistemas alternativos de tratamento de água dificulta a purificação da água em muitas comunidades, perpectuando o ciclo de contaminação.
5. Corrupção e Desvios de Fundos: A Saúde em Segundo Plano
A precariedade dos serviços de saúde e infra-estrutura não pode ser dissociada da corrupção sistémica. Desvios de fundos em instituições como a Administração Geral Tributária (AGT), o Instituto Nacional de Gestão de Bolsas de Estudo (INAGBE) e no sector da água e combustíveis resultam na redução de investimentos essenciais para o bem-estar da população.
A corrupção desvia recursos que deveriam ser utilizados para:
i) Expansão da rede de abastecimento de água potável.
ii) Construção de infra-estruturas sanitárias adequadas.
iii) Investimentos em saneamento e reciclagem.
O resultado? Um país onde a culpa é sistematicamente transferida para a população, enquanto os verdadeiros responsáveis permanecem impunes.
A solução para as doenças evitáveis em Angola exige uma combinação de inteligência e sinergias interministeriais. O foco deve ser na prevenção estrutural, e não apenas no combate às doenças quando estas já se instalaram. Sem acesso universal à água potável, saneamento básico e uma política rigorosa de segurança alimentar, o país continuará a apresentar baixos índices de desenvolvimento humano.
Se essas questões não forem tratadas com seriedade, a tendência será a crescente emigração de angolanos e o aumento do investimento no exterior, enquanto internamente a população continua a viver entre epidemias cíclicas e pobreza estrutural. Como bem pontuou Amartya Sen (1999), "o desenvolvimento não pode ser reduzido ao crescimento do PIB, mas deve ser medido pela expansão das liberdades e capacidades das pessoas".
É hora de Angola redefinir suas prioridades, garantindo condições dignas de vida para sua população e interrompendo o ciclo vicioso das doenças evitáveis.