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O ‘pesado fardo’ de ser criança nas periferias de Luanda

Sebastião Garricha
1/6/2024
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Foto:
Andrade Lino

A Economia & Mercado (E&M) andou por alguns pontos de Luanda, a cidade capital do País, para acompanhar o dia a dia de várias crianças, além de ouvir depoimentos sobre o que pensam para o futuro.

Angola celebra o 1 de Junho como o Dia Mundial da Criança, data igualmente comemorada por mais países, como são os casos de Portugal e Moçambique. Mas existem, também, aqueles que celebram a efeméride numa data diferente, como o Brasil, que escolheu o 12 de Outubro.

Por ocasião da data, a Economia & Mercado (E&M) andou por alguns pontos de Luanda, a cidade capital do País, para acompanhar o dia– a-dia de várias crianças, além de ouvir depoimentos sobre o que pensam para o futuro.

À partida, a calcular pelas histórias captadas, engana-se quem se baseia nas estatísticas globais para tirar conclusões sobre a situação da criança em Angola. Por exemplo, além de revelar dados  que apontam para a diminuição das taxas globais de mortalidade infantil, o UNICEF certifica o esforço do Governo de Angola na luta contra a violação dos direitos da criança.

Mas o resultado parece ‘não conjugar’ perfeitamente com as constatações da E&M, feita no chamado bairro ‘Porto Pesqueiro’, onde a realidade desmascara ‘desigualdades persistentes’ que afectam uma população infantil aparentemente ‘vulnerável’.

Falta água potável, escolas públicas, hospitais, postos médicos, espaços de lazer e vários outros direitos aos quais as crianças, à E&M, juram de ‘pés juntos’ não terem acesso.

Por exemplo, à entrada do bairro está uma vala de drenagem a céu aberto, que periga a integridade física de várias dezenas de crianças. Além de servir como ponte por onde os cidadãos fazem travessia, parece que a infra-estrutura é, também, um dos principais espaços de lazer para uma larga maioria de crianças.

A infra-estrutura aparenta ser ‘velha’, mas os moradores consultados dizem que a mesma terá sido alvo de intervenção do Governo, através da mão-de-obra estrangeira, há pouco menos de oito anos.

“Nós andamos a brincar de se dar corrida aqui”, relata o pequeno Zezito. Com os pés descalços, já que carrega o par de chinelos pretos nas mãos, o menino de 12 anos, destemido e aparentemente emocionado com os ‘disparos’ do gatilho da câmara, oferece-se para chamar outros seus amigos.

“Kota, espera só, eles vão vir. Venham, também vão vos tirar fotos nesses kotas”, apela em voz alta.

No seu rosto vê-se a alegria de uma criança inocente que encontrou uma razão diferente para sorrir. “Ainda não sei o que vou ser”, diz Zezito, depois de levar alguns minutos a pensar na pergunta sobre o que pensa ser no futuro.

“Quero ser polícia”, responde Adão. É curioso que, à sua semelhança, mais cinco crianças, num universo de sete, inquiridas em locais diferentes, nutrem o mesmo sonho. São os casos de Lourenço, Isaías, Lucas, Bernardo e Paulo, todos a frequentar a 4.ª classe no Complexo Escolar Manguxi - 5426, que fica logo à entrada do bairro.

Paulo quer ser agente da Polícia para ajudar a melhorar a situação da segurança pública no bairro que o viu nascer. Aliás, é a mesma justificação de Isaías. Já Lourenço, de 13 anos, quer ser como o pai, que há muito tempo anda nas fileiras da Polícia Nacional. Contrariamente, Lucas e Bernardo foram inspirados pelos filmes..

Além de agentes da polícia, no futuro, parece que o ‘Porto Pesqueiro’ poderá ser apontado como um bairro por onde nascem talentos do futebol nacional, porque Marcos, de 12 anos, Jeremias, de 13,  Sousa, de 14, e Jonilson, de 13, só pensam na ‘bola’.

A julgar pelo que dizem à E&M, o futebol é, praticamente, o único lazer que os meninos têm disponível. Jogam, normalmente, nas ‘apertadas’ ruas do bairro, noutras vezes no interior de um quintalão particular, onde se salva quem consegue escapar da reprimenda dos seguranças.

“Depois de fazer serviço, começamos a jogar. Na escola, também jogamos na hora do intervalo. Ao sair, antes de chegar em casa, jogo com os colegas”, conta Sousa, o mais velho entre os quatro potenciais activos da futura selecção nacional de futebol.

Do sonho de futebol, a E&M avançou para a enfermagem, um desejo que não sai da cabeça da menina Rosa Maria. Com os seus 12 anos, Rosa vai à escola quando calha, tudo porque sobre si recai o ónus de cuidar da casa e dos irmãos mais novos.

A sua jornada começa às 6h da manhã, já com os braços ocupados e a cabeça pressionada pelo relógio. Os pais saem antes do nascer completo do sol. Rosa tem a inegociável obrigação de tratar da higiene e alimentação dos dois irmãos mais novos, além de levá-los à escola.

No regresso, conta que deve, obrigatoriamente, reservar tempo para acarretar água, tratar da higiene da casa e preparar almoço para quando os dois pequenos voltarem.

“Às vezes não tenho como vir na escola. Mas quando venho, muitas vezes fico a dormir, por causa do cansaço”, confessa. É, na verdade, com um semblante carregado que a menina fala à E&M. Aparenta, tal como refere, estar agastada.

Mudam-se as personagens, mas história se repete

À saída do ‘Porto Pesqueiro’, o ‘Nguanhã’, antes localizado no Distrito Urbano do Sambizanga, agora atrelado ao Hoji Ya Henda, no município do Cazenga, é a outra paragem da equipa de reportagem da Economia & Mercado. Parece que a história não se altera.

Além da mudança de circunscrição, devido à Divisão Político-Administrativa do País, o bairro também sofreu outras alterações, principalmente do ponto de vista dos serviços sociais.

Para começar, já não é pela ‘famosa’ entrada da Comarca até a Nocal, agora oficialmente denominada "Nossa Senhora de Fátima", que se tem acesso ao bairro, sobretudo, para viaturas. Por aquela via, só as motorizadas têm ‘passe livre’, embora com elevado grau de dificuldade.

Para viaturas, resta a ‘estrada nova’, por detrás do Dom Bosco - Valão Sorouca, mais conhecida como entrada das Mabubas. É por esta via que a equipa da E&M chegou ao interior do bairro.

Logo à entrada, uma pista denuncia a existência da ‘proibitiva’ exploração do trabalho infantil: uma criança, com os pés descalços, carrega um enorme saco, posicionado entre o ombro esquerdo e a cabeça. À distância não se consegue decifrar o que há, de facto, no saco. Entretanto, de perto, vê-se, com dificuldade, uma quantidade de plásticos.

Mas não é a única pista que a E&M tem, pois ao fazer o cruzamento para o centro, antes da escola Ebenezer, das mais conhecidas do ‘Nguanhã’, está outro menino, por cima de um contentor de lixo, a catar plásticos.

Aparenta ter 10 a 11 anos, a julgar pela sua fisionomia. Está igualmente descalço, com o tronco descoberto e despreocupado com a ‘multidão’ que passa por ele.

“Estes não são os únicos, existem outros. Para piorar, muitos são mesmo mandados pelos seus responsáveis. Mesmo os que não são orientados fazem este trabalho sob o olhar dos pais. É quase a mesma coisa”, atira um morador que prefere anonimato.

Entretanto, além das críticas, há, no entanto, no Bairro Nguanhã, a Organização Não-Governamental (ONG) “Quero Ler”, criada para ‘preencher lacunas’ no sistema de ensino público, precisamente o pré-escolar e primário.

A instituição nasceu a 4 de Fevereiro de 2022. Actualmente conta com pouco mais de 1.030 alunos matriculados, divididos em classes e períodos diferentes, além dos professores, entram nas estatísticas de pessoas empregadas.

Juninho quer ser professor sem ir à escola

Foi no princípio da tarde de quarta-feira, 29 de Maio, que a E&M visitou os ‘Ossos’, um famoso bairro de Luanda localizado no município do Cazenga. É uma hora estratégica para captar o movimento de crianças a sair da escola e, na oportunidade, tentar saber o que pensam para o futuro.

No princípio da marcha, logo à entrada do bairro, pela rota que liga a estrada principal do famoso mercado Kwanzas à Refinaria de Luanda, a equipa da E&M depara-se com um menino que caminha sem bata. Sua apresentação denuncia que não é da escola onde saiu ou para onde vai.

Está de calções, t-shirt de cor azul, pernas empoeiradas, a carregar um saco aparentemente pesado pelo ombro direito e a caminhar com uma velocidade que abre margem para se pensar que esteja preocupado com o horário da escola. Aliás, já são 12h:40 minutos.

Mas não é este o caso de Juninho, um menino de 11 anos que não vai à escola há dias. À E&M, Juninho conta que o pai e a mãe sabem que não tem ido à escola, mas tem a certeza se conhecem a principal razão que o faz não continuar no ambiente dos colegas. "Estou ir pesar ferro', responde o menino, depois de questionado sobre o que carrega no saco que tem entre o ombro direito e a cabeça, revelando que trabalha para um cidadão adulto.

“Se custar 1000 Kwanzas ele me dá lá 200. Se custar 500 Kwanzas me dá 100kwanzas”, conta o menino que sonha ser um professor ou bombeiro, como o tios, irmãos da mãe.