Bairro da Paz, no distrito do Ngola Kiluanje, município de Luanda, é o destino da reportagem da E&M, no rescaldo do 4 de Abril, Dia da Paz. As duas vias que dão acesso à zona estão longe de ser um ponto simpático de ‘boas-vindas’.
O mais curto troço de acesso ao bairro está intransitável para carros, faz quase dois anos, e, mesmo de mototáxi, a breve viagem é feita com muitas cautelas, devido aos imensos buracos, que exigem dos condutores agilidade e alguma mestria.
O mais longo percurso de entrada na zona, com o ponto de partida na Tecnocarro, no corredor da Estrada Nacional n.º 100, é feito através de uma rigorosa marcha lenta, imposta pelo estado degradante da via.
A viagem, que era para durar pouco mais de 10 minutos, consome o triplo do tempo normal, num trajecto de cerca de dois quilómetros.
Carrinhas e kupapatas (motas de três rodas) são as que mais frequentam o troço, sobretudo na época chuvosa. O sentido do trânsito é, muitas vezes, confuso, face às curvas e contra-curvas a que recorrem os automobilistas, na finta ao pior do terreno esburacado e lamacento.
As poucas viaturas ligeiras que fazem o percurso, sobretudo as de serviço de táxi, expõem desgastes na chaparia, no roncar dos motores ou na fumaça dos escapes. Pelo caminho, é comum deparar-se com carros avariados. O lamaçal ou a poeira que inundam a via desaconselham uma viagem apeada.
O cenário de acesso à zona é um prenúncio do estado de penúria no interior de um bairro apelidado de Paz, mas que vive uma gritante ausência de sossego.
Aqui, a cerca de três quilómetros do Centro da Cidade de Luanda, os mais de 30 mil moradores - dados de 2018 - queixam-se da ausência completa ou parcial dos principais serviços públicos: saúde, educação, água, saneamento e segurança.
O bairro conta com uma escola do ensino primário e um Instituto Polítécnico, insuficientes para cobrir a demanda. A carência abre caminho a iniciativas privadas. São muitos os estabelecimentos de ensino particulares que operam na zona.
Na saúde, o cenário repete-se, mas chega a ser mais preocupante. Não há qualquer unidade sanitária pública a funcionar no bairro. A alternativa para casos de doença são os postos de saúde privados ou os hospitais estatais localizados nas zonas vizinhas.
“Com as vias conforme estão, se te apanha uma doença complicada morres pelo caminho”, desabafa o ancião Pedro Capitão, coordenador do Quarteirão Fortaleza, da Comissão de Moradores do Bairro da Paz.
Garante que a relação com a Administração Distrital do Ngola Kiluanje é “saudável” e que aquela estrutura conhece “bem” as preocupações dos moradores: “Eles sabem de tudo. Dizem que dependem, também, do município. Até aqui, não temos obras do PIIM (Plano Integrado de Intervenção nos Municípios), nenhuma sequer”, atira, inconformado, Pedro Capitão, que assegura ter visto o bairro a ‘nascer’, há mais de 30 anos.
Torneiras secas
Muitas das casas do bairro da Paz contam com ligação domiciliar da rede de distribuição de água, mas o líquido não jorra faz tempo. Não há explicações oficiais sobre o corte no fornecimento.
Com as torneiras secas, os moradores acorrem a zonas vizinhas para o acesso ao ‘precioso líquido’. Há, contudo, mais uma alternativa para colmatar a falta de água na zona: o recurso aos camiões cisternas. Mas esta opção tem-se revelado financeiramente mais exigente, devido ao estado das vias.
“Só consegues convencer um camionista a entrar aqui se pagares um custo muito acima do normal, e isso, como é óbvio, tem influência, depois, no preço alto da água. Há quem aproveite a chuva para encher os tanques. Mas isso tem os riscos que tem para a saúde”, observa Castro José Zezeleka, membro da Comissão de Moradores.
Saneamento precário
O mau estado das vias de acesso ao bairro da Paz é, igualmente, associado ao saneamento precário que se regista na zona. Há amontoados de lixo em muitos pontos.
Sem serviço de recolha, as alternativas de combate aos aglomerados de lixo são um atentado ao meio ambiente: depósito no mar ou queima de resíduos.
“Sentimo-nos numa ilha abandonada, distante dos serviços públicos importantes. Quando tu não tens estradas não tens nada”, afirma Castro José Zezeleka.
Refere que, com o estado de degradação das condições sociais no bairro, muitas são as iniciativas privadas que acabam em falência e outras que morrem à nascença.
“Como atrair investimentos privados com estes problemas todos? Os nossos jovens não têm quase com que se divertir, fora o campo de futebol que, por pouco, não o perdemos”, desabafa Zezeleka.
Energia uma certeza, mas às 22h há um ‘recolher obrigatório’
No bairro da Paz, a energia é um caso isolado de satisfação pelos serviços públicos. Entretanto, a iluminação pública ou domiciliar não inibe os altos níveis de criminalidade na zona.
Os moradores contam que vivem longe do sossego. O mais recente episódio de criminalidade reporta a morte com arma de fogo de uma adolescente de 16 anos.
A esquadra policial mais próxima fica no bairro vizinho do São Pedro da Barra. Na costa marítima, está uma Subunidade da Polícia de Guarda Fronteiras, que “actua apenas no mar”, sublinham os moradores.
No ano passado, uma acção das autoridades acabou com a Brigada de Vigilância Comunitária, vulgo ‘Turma do Apito’, o que provocou o aumento do sentimento de insegurança entre os moradores.
“A partir das 22h, somos obrigados a fechar-nos em casa, devido ao risco de assaltos”, informa André Teka, fiscal da Comissão de Moradores do Bairro da Paz.
Maria Gaspar, doméstica, vive no bairro há 15 anos e recorda os momentos de tranquilidade já vividos na zona: “Antigamente, podíamos dormir fora de casa, nos quintais, sem problemas. Isso já foi um bairro de paz, tranquilo e sossegado. Agora, é um bairro violento”.
SONANGOL e Soares da Costa instaladas na zona
Moradores do bairro da Paz mostram-se perplexos com o facto de a zona experimentar dificuldades sociais diversas e empresas de referência contarem com instalações na circunscrição.
A petrolífera SONANGOL e a construtora Soares da Costa integram uma vasta lista de empresas públicas e privadas que têm instalações no interior da zona ou na sua periferia.
“Como entender que uma via que dá acesso a grandes empresas esteja no estado em que está? Não pode! Dizem que a Soares da Costa pretendia construir a nossa estrada, mas o Estado não permitiu”, lamenta André Teka.
Morador da zona há 10 anos, o jovem Clemente António apela para uma maior aproximação e diálogo entre as autoridades, as empresas que operam no bairro e os cidadãos.
“Temos, aqui, muitas empresas que, se implementarem os seus projectos de responsabilidade social, podem ajudar-nos a resolver muitos dos nossos problemas. É preciso mais diálogo”, sugere o jovem que se viu obrigado a cancelar a frequência universitária, por não suportar os custos com transporte.
O bairro da Paz, situado no litoral do distrito urbano do Ngola Kiluanje, no município de Luanda, surgiu no início da década de 90, com cidadãos maioritariamente provenientes do Norte do País entre os primeiros moradores.
A zona ‘nasceu’ como jurisdição do antigo município do Sambizanga. Entretanto, devido à alteração na divisão político-administrativa de Luanda, o bairro é, agora, da circunscrição do município de Luanda.