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PATROCINADO

Zé Ramar, o produtor angolano de calçados que “servem ao mundo”

Victória Maviluka
12/3/2024
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Foto:
Isidoro Suka

Artesão opera no couro há 34 anos. O seu pequeno atelier e fábrica artesanal acolhe oito empregados e está em fase de crescimento. O benguelense sonha com uma fábrica no País de referência mundial.

Manhã de quinta-feira, 07 de Fevereiro. O sol está ardente. Tem sido assim, estes dias, em Luanda. Um barulho de máquinas consome o pequeno quintal. O tecto está coberto de chapas e duas portas abertas permitem não só a circulação do ar natural, mas, também, o olhar curioso de transeuntes da zona da Esquadra, interior do Zango II, a Sul de Luanda. É intencional tal exposição. Do exterior, é inevitável o contacto com gente em pleno ambiente laboral. Há calçados por todo o lado, uns em fabricação, outros prontos para estreia e alguns ainda visivelmente desgastados. Vêem-se, também, espalhados pelo quintal, instrumentos e acessórios de sapataria. O cenário denuncia uma fábrica artesanal de calçados. 

O espaço é próprio. É aqui o atelier e fábrica artesanal de couro de Zé Ramar, nome artístico de José António Luís Paulo, o homem que se gaba de ostentar técnicas para produzir calçados e sandálias genuinamente angolanos, com estética e qualidade que “servem ao mundo”.

No interior do quintal, meia dúzia de artesãos não se deixa distrair com a presença da equipa de reportagem. A concentração espelha o comprometimento com o trabalho e com os clientes. Estes fazem-se ao local com regularidade. O frenesim justifica-se com a aquisição, restauração ou levantamento de peças: sapatos, sandálias, cintos ou pasta de bolso.  

As tarefas destes artesãos são coordenadas. Não obstante a polivalência de quase todos, as actividades estão devidamente distribuídas. Há ‘timings’ por cumprir. O termo de cada tarefa deve fazer-se simultaneamente, procedimento determinante para acabamento sistematizado de cada peça.

Jesus olha com atenção para um pedaço de sola que esquarteja delicadamente. O resultado final é produzir vira, um material que intercala as coberturas superior e inferior dos sapatos.

O jovem atravessa os 26 anos e está à espera do primeiro filho. Admite que “não é grande coisa” o que aqui ganha, mas “dá para se remediar” e assumir, agora, as funções de chefe de família.

Não é grande coisa” o que aqui ganha, mas “dá para se remediar” e assumir, agora, as funções de chefe de família

José, por sua vez, dá acabamento ao trabalho iniciado por Jesus. Eis a evidência de um trabalho coordenado. Mas aquele trata, igualmente, de atender aos clientes, que não param de chegar. Os pagamentos são feitos por TPA.

O pequeno atelier e fábrica artesanal de couro regista, nos últimos dias, um aumento considerável no número de clientes. É o retorno de alguma viralização dos seus produtos nas redes sociais.

“Vi uma publicação nas redes [sociais] e vim consertar um calçado da empresa. Deram-me até domingo para levantar o produto. Parece-me que os preços são razoáveis. Vamos ver o resultado, vamos ver”, observa, cauteloso, Osmary.

Alberto está, neste instante, numa sessão de reparação e conserto de sapatos. Aos 33 anos, continua de pedra e cal numa actividade que já realizava antes mesmo de cá chegar. Passou por um teste “básico” e fixou-se aqui há já dois anos. Diz que o percurso “tem valido a pena”.

Nesta altura, chega, transportado numa motorizada, Zé Ramar, o proprietário do empreendimento e o mais experiente técnico do atelier. Saúda, com simpatia, a equipa de reportagem da revista Economia & Mercado e os seus funcionários. 

Coloca imediatamente um colete de serviço e desacta a cobrar resultados aos pupilos. Passa-os simultaneamente algumas recomendações e reparos técnicos. A mensagem que transmite é clara: rigor e exigência.

A voz de autoridade do artesão é dirigida a todos. Mas Quimbundo é a excepção. De pele escura e dreadlock na cabeça, o sapateiro manuseia uma máquina de coser. Está a preparar tampões, peças que servem para calçados femininos.

Quimbundo, um artesão experiente

Diferentemente da maioria, Quimbundo está mais descontraído. Acena ao ritmo da música do estilo reggae, que ouve a partir de um aparelho portátil. Os anos de ‘estrada’ na profissão dão-lhe estabilidade e tranquilidade. Zé Ramar tem-no como um parceiro experiente. Afinal, Quimbundo soma quase duas décadas como artesão de couro. É neste percurso, nesta profissão e aqui que viu nascer os seus três ‘rebentos’.

“Veio para aqui miudinho e, hoje, é mestre na produção de calçados, pasta de bolso, cintos. Aqui é uma escola. Preparamos as pessoas para inserção na sociedade de forma útil”, afirma Zé Ramar.

A fábrica artesanal de calçados de Zé Ramar, no Zango II, em Luanda

Realização de sonho custa 250 milhões de Kz

Há 34 anos na profissão, Zé Ramar diz-se com experiência e talento suficientes para liderar, no País, uma pequena fábrica de sapatos com níveis de qualidade e estética capazes de ombrear com as melhores marcas mundiais.

Confidencia que, de tanto sonhar a liderar um projecto desta envergadura no País, já o tem desenhado, com detalhes de custos, inclusivamente.

“As ideias já andam arrumadas há muito tempo, meu irmão. Garanto-te: isto aqui é uma mina de ouro. Eu conheço bem este mercado. Não sou um amador. É só me darem oportunidade, dão-me 250 milhões de Kwanzas, que eu consigo erguer uma fábrica-escola, que forme jovens nesta área e produza calçados em Angola, que nada ficam a dever às grandes marcas mundialmente conhecidas”, assevera.

Mas observa que, antes de consumar um sonho destes, gostava de realizar o desejo da formação na área, um sonho que viu escapar em 2005, quando tentou o contacto junto da Embaixada de Angola na Itália, para participar num curso na Universidade de Polimoda, em Florença.

“Eu preciso de fazer uma formação. O diploma do povo não basta. Quero um diploma de uma academia, para estar credenciado e certificado como verdadeiro designer de sapatos e acessórios. Eu já sou designer, porque eu desenho e faço. O que se faz aqui é o que se faz na Itália, na Inglaterra, em Portugal, em todo o lugar. O processo de fabricação é o mesmo. Os nossos calçados servem ao mundo. Estou a falar de estética e capacidade técnica. A diferença está apenas no material”, declara, como que a confessar.

O diploma do povo não basta. Quero um diploma de uma academia, para estar credenciado e certificado como verdadeiro designer de sapatos e acessórios. Eu já sou designer, porque eu desenho e faço

A par dos insumos, queixa-se, também, de dificuldades na compra de equipamentos para feitura de peças, como uma máquina de costura. A que está em uso na sua fábrica artesanal tem quase 40 anos, por isso, “está antiquada” e “é difícil de recuperar” em caso de avaria, por falta de acessórios do seu tempo.

A adaptação de equipamentos é, aliás, uma prática frequente, uma saída para a falta de condições de aquisição de materiais actualmente em uso na indústria de calçados: “O esmeril que vocês vêem aqui é uma máquina adaptada para fazer acabamentos de acessórios diversos”.

Desafia que, com máquinas modernas, elevaria a actual capacidade diária de produção, por exemplo, de 15 pares de sandálias para mais de 100.

Sandálias femininas da marca Zé Ramar

Encomendas de quase todos os pontos do mundo

Zé Ramar garante que a sua marca é uma realidade em muitas avenidas americanas e europeias. Confessa, a pés juntos, que tem recebido encomendas de quase toda a parte do mundo. 

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Lisboa são importantes paragens de onde surgiram pedidos para fabricação de sapatos de ‘direito angolano’, das mãos de Zé Ramar.

Refere que a maior parte destas encomendas é feita por angolanos, que vêem nos seus produtos uma “marca da terra”, com “traços estéticos diferenciados e inovadores”.

“Diferencio-me na capacidade de desenhar. Faço muito poucos trabalhos repetidos. Como sabemos, o angolano é vaidoso, gosta das coisas da terra.  Não sei se existe um povo que ama mais a sua terra que o angolano. Nós só saímos do País por razão de força maior. Deus foi justo connosco, é mesmo só vontade dos homens que está a faltar”, atira o artesão.

Faço muito poucos trabalhos repetidos. Como sabemos, o angolano é vaidoso, gosta das coisas da terra.  Não sei se existe um povo que ama mais a sua terra que o angolano. Nós só saímos do País por razão de força maior

A nível interno, Zé Ramar recebe, embora não com a intensamente que desejaria, solicitações de algumas superfícies comerciais e alguns ateliers, particularmente que operam na capital do País. 

Como expositor, já ‘pisou’ os palcos da FILDA, mas lamenta que o lugar concedido não tenha permitido que alcançasse resultados mais bem-conseguidos.

Estivemos, inicialmente, a expor num lugar um pouco discreto. Depois, mudaram-nos de espaço. Conseguimos vender aí 300 pares de calçados”, recorda, com satisfação no rosto.

Recentemente, o sapateiro foi, igualmente, convidado a uma exposição organizada pelo Ministério das Relações Exteriores (MIREX).

Admite, entretanto, incapacidade para responder à solicitação de produtos em números consideráveis. Confessa que, por limitações na produção, por conta das condições de trabalho, já renunciou a várias solicitações, últimas da quais da rede de supermercados Kero. 

Grande parte dos insumos para fabricação de calçados vem de fora do País

Insumos, um calcanhar de Aquiles

À semelhança do que acontece noutros segmentos da indústria, a produção de sapatos em Angola depende grandemente da importação de insumos e equipamentos.

Solas, borrachas, tacão, fivela, cola, mola, linha são alguns dos produtos usados na fabricação de calçados, cintos e pasta de bolso que provêm, predominantemente, da vzinha República Democrática do Congo (RDC).

“Os meus produtos podiam ser um pouco mais baratos se o mercado nacional produzisse os insumos necessários. É que quase tudo vem de fora, da fronteira do Luvo e da Namíbia. A nível nacional, só uma parte para fazer remessas vem de Benguela. Descobri uma fábrica de couro, de curtumes, aqui no Kikuxi, que produz muitos dos materiais com que trabalhamos. É um couro que também não está muito acabado, porque o nosso couro ainda não tem muita qualidade. Quer dizer que a magia toda que há nos nossos produtos depende do nosso acabamento”, sublinha.

Os meus produtos podiam ser um pouco mais baratos se o mercado nacional produzisse os insumos necessários. É que quase tudo vem de fora, da fronteira do Luvo e da Namíbia

Diz que esta dependência do estrangeiro é consequência da falta de políticas e aposta no segmento. Exemplifica, perplexo, o facto de a sola que usa para fabricar sandálias ser importada de países que “apenas” transformam o material a partir de reciclagem de pneus, acessórios que, pelo País, “há em abundância”.

O artesão de couro informa que os preços dos sapatos masculinos da sua produção custam, em média, 75 mil Kwanzas. Os produtos femininos podem ser encontrados a partir dos 18 mil Kwanzas. O valor máximo das peças são 150 mil Kz. A reparação de calçados, sobretudo de sapatos, tem um custo médio de 15 mil Kz. 

O volume de facturação é volátil, sazonal. Nos momentos de bonança, a facturação diária nesta fábrica artesanal de calçados pode chegar aos 100 mil Kwanzas.

Devido a esta volatilidade, o método que encontrou para pagar salários aos seus funcionários é a partir da percentagem da facturação.

Zé Ramar deixou a Contabilidade para se dedicar ao couro

Contabilidade ou Sapataria? A paixão ‘fala mais alto’

Zé Ramar, que dá o nome ao atelier e à marca de calçados, cuja patente ainda está por registar, é licenciado em Contabilidade e Finanças e membro efectivo da Ordem desta especialidade. 

Conta, com nostalgia, que, há dois anos, se viu obrigado a abandonar a Contabilidade, inconformado com as “injustiças remuneratórias” diante da “acentuada carga de trabalho” imposta pela profissão.

“Há muitas incompatibilidades no exercício da Contabilidade. As leis que regulam a actividade não estão ajustadas à nossa realidade. Dá muito trabalho defender os interesses de empresas. Tu não dormes, estás sempre a pensar no fecho de contas, nas leis, enfim, é tanto trabalho que o salário não compensa. Tive de desistir”, desabafa.

Realça que pesou, também, na decisão de se divorciar da Contabilidade os apelos de populares, que pediam o seu regresso à sapataria, num momento em que se viu a braços com dificuldades impostas pela Covid-19, que o levaram a encerrar o seu estabelecimento comercial, que operava na área de distribuição.

“Regressei aos sapatos e não mais quero sair. Apesar de não estar ainda a ganhar melhor que na Contabilidade, fico feliz pelos resultados que estou a ter. São animadores e recomendam-nos a continuar”, assegura.

Apesar de não estar ainda a ganhar melhor que na Contabilidade, fico feliz pelos resultados que estou a ter. São animadores e recomendam-nos a continuar
Artesão, ao lado dos seus filhos, também funcionários da fábrica artesanal

Forjado em Benguela pelo mestre José Caundo

José António Luís Paulo, o Zé Ramar das lides artesanais, tem o cordão umbilical enterrado, em 1977, no bairro da Massangarala, província de Benguela, litoral Sul do País. 

É na sua terra natal que descobriu, ainda nos primeiros anos da adolescência, a paixão pelos sapatos, influenciado, “de forma natural”, como faz questão de observar, pelo tio e “eterno mestre” José Caundo.

“Ele faleceu, mas a sua obra está viva. Estou a dar continuidade à sua arte e a preparar uma nova geração de sapateiros”, declara, vigorosamente.

Atesta esta pretensão de passagem de testemunho os seus oito empregados, quase todos eles na idade juvenil, cinco dos quais, realce-se, seus filhos: Reinaldo, o tesoureiro da empresa; José, técnico de 1.ª; Ramarzinho, que cuida das relações públicas; Glória, a cozinheira, e o pequeno Fernando, que, com 10 anos, tem a tarefa de remover pequenos pós dos calçados. 

Ainda não se sabe, entretanto, se Luísa, de seis anos, e Nahara, de dois, vão decidir por manter ou romper com a tradição de uma família que tem a sapateira a correr nas veias.

Mas há mais um integrante no agregado de José Ramar que presta serviços à empresa e que desperta curiosidade e eleva a importância social do projecto: Bruno, um jovem “dinâmico, surdo e mudo”, como o descreve o veterano artesão, veio de Benguela, enviado pela mãe para, ao lado do primo mais velho, encontrar na sapataria o caminho da inclusão, da socialização. 

Zé Ramar confidencia que o apelido com que é conhecido na arte de produção de calçados lhe foi posto por Celso Rosas, o PCA do Porto do Lobito, com quem cruzou, nos finais da década de 90, já em Luanda, numa das jornadas de assistência a clientes na Sapataria, e foi através deste que cruzou o caminho da formação em Contabilidade.